A PONTE DE MISARELA
Os povos circunvizinhos desta ponte (da Misarela, no concelho de Montalegre) dizem que ela foi construída pelo diabo, e contam a tal respeito a lenda seguinte:
Havia um mau homem, em terras de Além-Douro, a quem as justiças encarniçadamente perseguiam, por vários crimes, e que
sempre se escapava, como conhecedor que era dos esconderijos proporcionados pela natureza selvática da região, nos remotos tempos em que o caso se deu.
Apertado, porém, muito de perto, embrenhou-se um dia no sertão, e transviado, achou-se de repente à borda de uma ribeira torrencial, em sítio alpestre e medonho, pelo alcantilado dos penedos, e pelo fragor das águas, que ali se despenhavam em furiosa catadupa.
Esquecido como andava da graça de Deus, apelou o malvado para o anjo mau, e tanto foi invocá-lo, como estontear-se lhe a cabeça,
perder a luz dos olhos, e manifestar-se-lhe o diabo em visão.
«Faz-me transpor o abismo, e dou-te a minha alma» foram as suas más palavras.
O diabo aceitou o pacto, e lançou uma ponte sobre a torrente; o réprobo passou, e seguiu sem olhar para trás como lhe fora exigido; mas pouco depois sentiu grande estrépito, como de muitas pedras que se derrocavam, e ninguém mais ouviu falar da improvisada ponte.
Os anos volveram, e enfim chegou a hora do passamento. Mal podia partir-se quem tinha de saldar contas tão intrincadas, e que
satisfazer a contrato tão tenebroso.
Enfim desprendeu se a vida daquele corpo, a quem a alma já não pertencia, e se o sacerdote, que ouviu o último arranco do moribundo não pôde abrir-lhe o caminho da salvação, recolhendo a confissão de seus medonhos crimes, pôde ainda apontar-lhe, como lenitivo, para a inesgotável magnanimidade do Juiz Supremo.
Mal se acomodava, porém, com o ânimo do bom padre, não tirar da revelação, motivo para castigar o espírito das trevas.
Um dia em que as exigências do seu ministério o levaram ao sítio em que se deu o caso já referido, disfarçou-se o melhor que pôde, e pronunciou os terríveis esconjuros.
O diabo não se fez esperar, nem rogar para assentar no mesmo pacto que já lhe era sabido.
Apareceu a ponte renovada; o sacerdote passou, mas tirando rápido um ramo de alecrim, molhou-o na caldeirinha que levava oculta, três vezes aspergiu, fazendo o sinal da cruz e pronunciando as palavras sacramentais dos exorcismos. O mesmo foi fazê-lo que sumir- se o demónio, deixando o ar cheio de um vapor acre e espesso, de pez e de resina, de envolta com cheiro sufocante de enxofre, e ficando de pé a ponte.
----------------------------------------
(Misarela), ponte legendária, na província de Trás os-Montes, concelho de Montalegre, que tem de comprimento (a ponte) 26,62m., e de largo 2,61m.
Esta pitoresca e célebre ponte, está lançada sobre o rio Rabegão,
ou Misarela, a distância de 1 quilómetro da sua confluência com o Cávado, na estrada de Braga, para Montalegre, por Salamonde.
Está a ponte formada sobre dois grandes penedos; é de cantaria com um só arco, mas de 13 metros de vão. A sua altura (na estiagem) desde a superfície da água até ao pavimento, é de 23 metros.
É antiquíssima, e atribui-se aos romanos a ponte primitiva. Foi reconstruída no princípio deste século.
O estrondoso rugido das águas, precipitando-se de catadupa em catadupa, e formando por baixo da ponte uma profunda caldeira, cujas paredes são formadas pelos alcantis circunjacentes, que se elevam em escalões, a grande altura, por entre matagais e alguns anosos castanheiros, poucas oliveiras e raras videiras; e o Gerês, que a mui curta distância (ao Oeste) ostenta parte da sua majestade selvagem, dão a este sítio uma celebridade que não têm as outras pontes do reino, embora mais antigas, maiores e de mais primorosa arquitetura.
Nesta ponte sofreu o exército francês, em 16 de maio de 1809, quando fugia para Espanha, nas pontas das baionetas do exército luso-anglo, e pelas 10 horas da manhã, uma débil resistência, pelas ordenanças de Montalegre, e algumas outras, morrendo bastantes franceses da retaguarda. Seguiram a estrada de Montalegre, pelos lugares de Sidrós, que incendiaram, Vila Nova, Ponteira, Paradela, Loivos, Fiães, Vilaça, Cambeses, Montalegre (onde entraram ás 10 horas da manhã de 17) e Pachoso, de onde saíram na madrugada de 18, até entrarem na Galiza, perto de Orense. (Se esta e outras pontes tivessem sido previamente cortadas, a perda dos franceses seria total.)
Em 7 de março de 1827, houve também nesta ponte um pequeno encontro, entre as tropas realistas, do general Silveira (conde de Amarante e marquês de Chaves) e as liberais, do general Zagalo. Silveira retira para a Espanha, porque os ingleses de Clinton, marcham de Lisboa para o norte, contra os realistas. Estes entram em Espanha a 8, por Abelano e Sant'Ana, e foram para Valhadolid.
O Rabegão serve atualmente, neste ponto, de divisão entre as províncias do Minho e Trás-os-Montes, e os distritos administrativos de Braga e Vila Real; tendo-se anexado ao concelho de Vieira (Minho) a antiga vila de Ruivães, e a vizinha paróquia de Campos.
Excertos da obra “Portugal Antigo e Moderno”, Vol. 5 de Pinho Leal (1875, vol. 5, pág. 338)
Fotografia do arquivo da Wikipedia